Caro(a) Mestrando(a):
Estamos agora a ter mestrados de Bolonha. Há a maior confusão de critérios, por essa Europa fora, sobre bitolas e transições entre regimes. Sobre o próprio significado do grau. Em Portugal, em algumas áreas, como no Direito e nas Letras, o Mestrado pré-bolonhês era em alguns casos mais exigente que certas teses de doutoramento no estrangeiro. Não é mito, mas plena verdade. Hoje, o Mestrado parece ficar ao nível da antiga Licenciatura. Em certos casos, até menos. Mas poderá ser assim mesmo?
E depois há a dissertação, ou tese: novo bicho-de-sete-cabeças.
Que fazer?
Vou pensar alto consigo sobre o que uma tese, em geral, deve ser, e pode ser – mesmo hoje. As adaptações deve fazê-las à situação concreta que vive, com bom senso, que é a principal virtude em todas as coisas universitárias – e que tanta falta está a fazer, a tantos níveis. Não vou poder esconder as áreas com que mais convivo (e as suas preocupações e exigências próprias), mas algumas coisas poderão ser de aplicação geral... Fará o favor de fazer as devidas adaptações.
Antes de mais, peço-lhe que releia e medite o belíssimo livro de Umberto Eco, Como se faz uma tese. Tenho aprendido muito com essa releitura diuturna. Aí está quase tudo.
Mas se te pressa, vamos a conselhos.
Creio que deve fazer uma investigação de fio a pavio, e só escrever quando estiver adiantado na investigação geral. Vá tomando notas, faça fichas. A arte das fichas é meia tese feita. Nada impede que as fichas sejam feitas no computador... Embora haja quem faça fichas com o mesmo amor com que tricota.
Uma tese não pode escrever-se currente calamo, como um romance ou mesmo como um libelo, ainda que douto e erudito. Tem de ter a sua dose de reticências. Mesmo de avanços e recuos, e travessias do deserto, por vezes.
Sempre se deve manter um certo distanciamento. Uma tese nunca deve ser angustiada, nem exaltada. Que tese de hoje não é como as teses de Lutero. Tem de ser mais contida. Mais distanciada. Mais irénica. Pelo menos em temas polémicos. Não parece que os tempos estejam receptivos a teses ideológicas, políticas, de polémica, ou de simples opinião. Num tempo em que as opiniões de cada um são por cada qual muito tomadas a sério e muito hipertrofiadas no seu valor, a melhor precaução é mesmo passar pelo crivo da crítica as opiniões. Uma tese não é um monólogo, ou um desses diálogos que mais parecem conversa de café. O verbalismo, sobretudo em algumas áreas, é um risco muito sério.
Não quer dizer que não se tenham opiniões. Nada disso. O que fica cada vez pior, o que cai definitivamente muito mal, é que uma tese signifique uma arma de arremesso (até porque, sendo volumosa o pode ser proprio sensu) para uma causa política, e mais ainda partidária ou sectária.
Poderá haver algumas causas que excepcionalissimamente justifiquem uma excepção a este princípio: mas não nos lembramos de nenhuma.
Tal proscrição do sectarismo das teses é apenas válida para temas e teses explícitas. É óbvio que em muitas teses de ciências sociais e humanas, filosofia e afins há um pano de fundo ideológico irrecusável. Mas tudo tem de jogar-se no decorum de algum distanciamento, e, se possível, com muitos dados concretos e verificáveis (ainda que possam ser, em alguns casos, simples dados de erudição). Uma das formas de avaliar uma tese sem ir ao seu cerne é verificar se, externamente, cumpriu os rituais académicos da objectividade, informação, legibilidade, citação correcta, raciocínio lógico, capacidade retórica não demagógica, etc.
É importante o plano. Fazê-lo depois de muito estudo, e como forma de guiar a tese a provar. Cumpri-lo é boa via; embora, por vezes, no decorrer de uma investigação, se possa ter de arrepiar caminho. Mas só com boas razões. E, se as houver, sem olhar para trás como a mulher de Lot. Em alguns países o plano é mesmo da responsabilidade do orientador, ou pode frequentemente sê-lo. A tradicional não directividade nestas coisas poderá também ter que ser revista. É uma questão a ponderar.
Não será contudo excelente ideia seguir muito os passos do orientador. Pode-se citá-lo, mas não em demasia. E sobretudo não é nada bom sinal usar demasiado a bibliografia que ele usa nos seus livros, e sobretudo nas suas teses. Claro que há orientadores enciclopédicos que citam muitas fontes, e então seria complicado arranjar novas. Mas est modus in rebus: se um orientador descobriu um manuscrito perdido, o seu discípulo não anda bem se faz uma tese à custa desse manuscrito. Tem de encontrar, pelo menos, um manuscrito novo. A mesma coisa para a solução de uma equação complexa, ou um autor perdido.
Compreendo que pode haver originalidade com as mesmas fontes, mas isso nem sempre é visto ou tomado em conta, além de ser sempre mais difícil. E cai mal não encontrar um bom número de fontes novas. Depende também da área. Numa tese de História é de bom tom citar manuscritos. E sobretudo manuscritos ainda não citados antes.
Em todos os casos, em todas as áreas, o autor de uma tese é como a Mulher de César: Não precisa só ter trabalhado na tese - precisa de mostrar inequivocamente que trabalhou, e no terreno. Seja ele qual for.
Em muitas áreas a pesquisa de terreno cada vez vai mais ganhando importância. Em assuntos humanísticos assume muitas vezes a dimensão sociológica, estatística, comparatística. Também no Direito. Por exemplo, vai-se procurando legislação, e doutrina, sim, mas cada vez mais jurisprudência (e jurisprudência de tribunais europeus, ou simplesmente estrangeiros) e agora também, em muitos casos, sociologia do direito nas suas diferentes dimensões. Depende, é claro, do tema, da área. Mas há coisas que por abundarem nunca prejudicam. Cuidado, porém, com a extensão da tese. No modelo bolonhês, há tantas dissertações que, sem se perder a exigência da qualidade, tem de sacrificar-se a extensão. Não sou partidário de teses longas, mesmo antes de Bolonha o não era. Até um simples artigo, em boa verdade, já é plenamente capaz de mostrar o que vale um investigador.
A escolha de material novo é importante. Não voltemos a exemplos dados, senão para grandes conclusões novas. Um autor de tese com muito material consabido seria sempre suspeito de algum modo de “plágio”, ou, no mínimo, de falta de rasgo, ou de falta de trabalho: estigma que lhe ficaria para toda a vida. Normalmente estas famas não são recuperáveis.
Uma dissertação jurídica, por exemplo, não precisa de ter um volume de história teórica do tema, um volume de direito comparado a ele pertinente, e um volume de legislação nacional comentada. Coisas como trechos de processos, citações de jurisconsultos menos conhecidos, teorias novas, originais, à mistura com espólio dos arquivos ou das estatísticas mais modernas, tanto como gráficos e demais informática aplicada, caem bem mesmo numa clássica tese jurídica. Um estudo assim estará no bom caminho. A pós-modernidade fez explodir o paradigma das “fontes” sujeitas a numerus clausus de tradição ou de preconceito. O problema está em usar bem, inteligentemente, a grande liberdade de uso de materiais de que hoje se dispõe.
Em qualquer área, parece que hoje não vale a pena o autor da tese matar-se com dizer o que, de uma forma ou de outra, já foi dito, acrescentando a essa trasladação de ossadas (como alguém qualificou tal empresa), as suas discrepâncias pessoais em matérias que poderão considerar-se de escrúpulo ou de pormenor. A menos que sejam observações muito bem elaboradas e a sua doutrina muito relevante, para a teoria ou para a prática.
O autor da dissertação tem de estar a par do estado da sua arte, qualquer que seja. E mesmo dentro de uma área do saber (como o Direito, a Medicina, a Engenharia, a Literatura, a História...) uma sub-área e outra sub-área têm, por vezes, monstros sagrados e autores da moda completamente distintos, e a forma mentis de uns nada tem a ver com outros.
Por muito avesso que seja a essas leituras, o artesão da tese tem mesmo de ler e estudar os grandes autores clássicos e modernos do seu nicho de saber. Consultar os contemporâneos em francês, inglês, castelhano, italiano, pelo menos. Não falo já em obras alemãs ou noutras línguas mais complexas, desde logo as clássicas grega e latina. Mas conte já com essa crítica no doutoramento, se for em Direito. E não esqueça os lusófonos, desde logo os brasileiros. No Brasil se fazem, em muitas áreas, pesquisas do mais alto nível, com as quais temos muito a aprender.
Ler e fazer dialogar as ideias da galeria de retratos do seu campo com o que está em jogo é fundamental. E usar os conceitos em voga, e, com o distanciamento próprio, também os de outros tempos... A erudição cai sempre bem quando o júri é erudito. Claro que se o júri já só pensar na utilidade e na aplicação, e no “futuro e no progresso”, mais vale esquecer os argumentos do arsenal do passado, na redacção da tese e na defesa da arguição. Mas é sempre útil guardá-los onde mais importa: no coração e na cabeça. Os clássicos são sempre utilíssimos. Isso será uma arma secreta, independentemente da superficialidade e fugacidade dos graus. E sempre poderá depois publicar uma tese correcta e aumentada com o que, por cautela, não apresentou ao júri. Legítima defesa.
Começar logo a escrever é temerário (já o dissemos), e arrisca-se o autor de tese a ter de desaproveitar muito material. Só se escrever, essencialmente, para aquecer. Passe pelo menos meio ano (um ano seria o ideal) só nas leituras contextualizadoras e no trabalho de arquivo (ou afim). Pois não é muito, não é nada mesmo (também depende dos prazos para apresentação da dissertação...), intensivamente buscando (por exemplo, para o Direito) sentenças, peças administrativas quiçá, doutrina nova.
E tem o investigador de imbuir-se desse espírito de procura, de insatisfação. Assim se enriquecerá. Um pesquisador nunca pode acomodar-se à sua poltrona.
Jamais pode isolar-se apenas com velhos livros, muito menos os apontamentos das suas aulas, os manuais e lições. Deus nos livre desse psitacismo. Tem de tomar contacto com o que se faz nestas áreas, no País e no estrangeiro. Mesmo tendo um orientador, deve falar com outros professores e investigadores, ir vê-los, discutir ideias, aproveitar mesmo para a sua tese pontos de vistas e cosmovisões que lhe possam parecer totalmente contrárias. E o orientador não pode ficar com isso melindrado, muito pelo contrário.
É indispensável que leia, no mínimo, muitos artigos das principais revistas da sua área. Mas também deveria ter como leitura corrente revistas contemporâneas, culturais, pelo menos. E não só deve frequentar os oficiais teóricos do seu ofício, mas os oficiais afins, e os práticos. Aos teóricos e professores, deve o investigador visitar. E ir mesmo a aulas deles, compreender as suas problemáticas e o que estão a fazer no momento. Tem que pensar que o seu júri não será constituído por autores mortos. Mas certamente por pessoas bem vivas. Deve colocar-se no seu lugar: muitas vezes, os possíveis membros do seu júri terão bem outras preocupações. Por vezes, até, serão de um tempo (mesmo mental) muito diverso. Para ver a variedade dos seus colegas, neste mundo globalizado, e, por isso, mais pequeno, deve o investigador ir a congressos, internacionalizar-se. Não é perda de tempo. Não pense que nestas coisas a tese fica ciúmes. É para ela que está a trabalhar.
Ah, e não deixe de ir ao cinema e ao teatro. O que nem sempre ocorre quando as teses não são em artes dramáticas. Aí como na Literatura encontrará muito material para teses de Humanidades, e quiçá mesmo de ciências mais duras. Kekulé fez descoberta na Química a sonhar...
Até o doutoramento, pelo menos, o investigador tem de pensar no que pretendem dele. São, infelizmente, as regras do jogo (salvo para eleitos, heróis e mártires). Só depois poderá decidir por si, e mesmo assim há quem jamais deixe de estar tutelado, vigiado, e avaliado (nem sempre por quem deveria ser). Depois de aprovado no doutoramento, já estará um pouco mais livre de críticas (e mesmo assim...); já terá provado o que tem a provar. Antes disso, é temerário não seguir escrupulosamente as orientações do director de tese, que se presume será seu amigo, e não o enganará... Mas que também é humano, e pode falhar, claro.
Lembre-se da ideia inicial da dissertação e só a abandone se, realmente, deixar de acreditar nela. A tese deve ser uma paixão, uma mania mesmo. Não sendo assim, não vale a pena fazê-la. Seria sempre frouxa.
E tem que ter um plano lógico, de preferência um plano que qualquer leigo (pelo menos se não se tratar de matéria muito abstracta) poderia suspeitar entender ao menos...
Importa ver se o tema interessa, se tem dignidade, se é actual. Deve passar pelo teste: será ainda uma tese universitária contemporânea? O que irá provar, de relevante, “macro-“, original, para a comunidade científica? Será uma mera curiosidade, minudência, nota de rodapé? Isso não seria uma tese...
Um exame de consciência se impõe antes de começar e antes de acabar uma tese. Claro que os mais inseguros terão oscilações, mas dirigimo-nos ao mestrando normal. E o bom senso deverá sempre ditar o que fazer. Perguntar-se-á então: devo começar uma tese ? Para quê? Em que é que isso vai fazer a minha vida melhor e o mundo mais feliz, ou, ao menos, verdadeiramente mais sábio? E no fim da tese as perguntas são as mesmas, mutatis mutandis.
Já há tantas teses no Mundo, e nenhuma tornou o seu autor célebre. Mas fazer uma tese pode trazer felicidade. Se o fazê-la lhe está a dar prazer, continue. Se acha que, mesmo torturando-se, ela vai trazer algum bem, ainda que pequeno, à Humanidade, pode continuar.
Para os mais prosaicos: pensem que as teses, um dia, davam direito a emprego. Agora parece que já nem isso. E contudo, sem elas o trabalho ainda fica mais precário, pelo menos para o comum dos que estudam e ensinam.
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
sábado, 7 de fevereiro de 2009
Novas Publicações, já depois de finda a sabática (balanço da sementeira escrita do primeiro semestre)
Alguns trabalhos publicados já depois do fim da licença sabática (entre finais de Setembro e princípios de Fevereiro), dando aulas de Licenciatura (Direito Constitucional I), e de Mestrado (tanto de Direito Constitucional como de Filosofia do Direito).
Livros 2009
- (72) Filosofia Jurídica Prática, Lisboa, Quid Juris, 2009, 800 pp.
- (73) Direito Constitucional & Filosofia do Direito, Porto, Cadernos Interdisciplinares Luso-Brasileiros (coord.), 2009
Artigos em revistas científicas, obras colectivas, Prefácios e afins
2009
- Politeia and Arete. Archeology of Senses and Hellenic Legacy, in Η ΕΝΝΟΙΑ ΤΟY ΠΟΛΙΤΗ ΣΤΗΝ ΑΡXΑΙΑ ΕΛΛΗΝΙΚΕ ΦΙΛΟΣΟΦΙΑ, The Notion of Citizenship in Ancient Greek Philosophy, ed. de E. Moutosopoulos e M. Protopapas-Marneli, Atenas, Academia de Atenas, 2009, pp. 146-160.
- Ortografia, Lusofonia e Direito, “Folha de São Paulo”, 1 de Fevereiro de 2009, em colaboração com Fernando Macedo (Angola), Kaft Kosta (Guiné) e André Ramos Tavares (Brasil).
2008
- Colunas de Liberdade. Função, Tipologia e Deontologia da Opinião Assinada nos “Media”, in “Tribuna”, n.º 23, Dezembro 2008.
- Subsídios para um Ensaio sobre o Direito Contemporâneo, in “Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno”, Universidade de Florença, vol. 37, 2008, pp. 499-541 (Separata em 2009).
- Uma Filosofia Constitucional Comum, in 1988-2008: 20 Anos da Constituição Cidadã, org. de André Ramos Tavares, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, pp. 199-201.
- Liberdade, Ética e Direito, Revista “Nomos. Revista do Curso de Mesttado da Universidade Federal do Ceará”, vol. 28. 2, Fortaleza, Julho / Dezembro 2008 / 2, pp. 111-138.
- História, Ideologia e Ética da Propriedade. Relectio Jusfilosófico-Política, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Coimbra, Almedina, 2008, vol. I, pp. 623-636.
- El Derecho Natural, Historia e Ideologia, in Las Razones del Derecho Natural. Perspectivas teóricas y metodológicas ante la crisis del positivismo jurídico, 2.ª ed. corrigida, reestruturada e ampliada, Buenos Aires, Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2008, pp. 53-65.
- Princípio Republicano e Virtudes Republicanas, in Educação e Metodologia para os Direitos Humanos, coord. de Eduardo C. B. Bittar, São Paulo, Quartier Latin, 2008, pp. 27-56.
- Prefácio a O Encontro entre Themis e Apolo: A Conexão entre Direito e Literatura, coord. de André Trindade e Germano Schwartz, Curitiba, Juruá, 2008, pp. 7-13 .
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